22 de out. de 2014

As armas da crítica e a crítica das armas*


Os meus dias têm sido especialmente alegres ultimamente, com a retomada de uma discussão que muito me agrada: a da necessidade de recuperar os aspectos fundamentais do marxismo-leninismo e de combater, em nome deles, com denodo, contra todas as formas de oportunismo. Agrada-me o tema e enche-me de satisfação ver entre os que promovem essa discussão nomes que aprendi a admirar, como Miguel Urbano Rodrigues e, Carlos Costa . Atrever-me a entabular seja que diálogo for com gente da craveira intelectual e política destes dois nomes é, bem se vê, uma insensata temeridade. Reconheço. Nunca me disseram, todavia, que a revolução dispensava temeridades, mais ou menos insensatas. E se eles têm por si a idade e a experiência a dar-lhes autoridade no que dizem, eu tenho a juventude a desculpar-me o atrevimento de meter, assim, a colherada na discussão.

Uma das questões mais mal resolvidas, historicamente, pelo movimento revolucionário, é a da relação que lhe cumpre ter para com o aparelho de Estado burguês. O modelo democrático representativo cria, quando analisado superficialmente, uma ilusão em que muito facilmente, ao longo da história, os partidos do proletariado se deixaram cair: se a maioria dos votos significa o acesso ao Governo, e se o proletariado constitui a esmagadora maioria da população, por dedução, bastava que o proletariado votasse maciçamente no seu partido e ele ascenderia, pela via eleitoral, às cadeiras do poder. Lá chegado, entre portarias e decretos, leis ordinárias e leis orgânicas, e uma ou outra intervenção policial nos casos em que a burguesia se mostrasse recalcitrante, o socialismo seria legislado e regulamentado até ao seu último detalhe, bastando ao proletariado aguardar que ele lhe caísse no colo, vindo de um qualquer parlamento. Pela primeiríssima vez na história, conclui-se, um modo de produção sucederia a outro no término dos dias do vacatio legis.

Esta leitura ingénua seria absolutamente insustentável à luz dos clássicos do marxismo. Engels, autor da expressão "cretinismo parlamentar" (cujo significado dispensa esclarecimentos), qualificava o acesso ao sufrágio universal como a demonstração de que a burguesia considerava o proletariado suficientemente domado para poder estender a ele o direito de voto, sem temer que ele pusesse em causa a sua dominação. E mesmo quando, nos termos do mesmo Engels "o termómetro da luta de classes" chegou ao ponto de ebulição e, pelo voto, um Governo popular foi eleito, compreendeu-se com rigor o que queria dizer Marx quando se referia à "máquina do Estado" e ao "aparelho do Estado burguês": os órgãos repressivos do aparelho de Estado, em ostensiva indiferença perante a vontade popular, tripudiando da lei e da constituição (afinal de contas, nada mais que um papel pintado), arrancaram do poder os eleitos pelo povo e, quando viram necessidade disso, suspenderam a democracia e acabaram com a existência de eleições. Há apenas dois dias passaram 41 anos sobre a triste demonstração prática desta verdade, no Chile.

Lenine nunca se deixou arrastar – e durante toda a vida condenou sem restrições quem o consentiu – para a armadilha do parlamentarismo e do legalismo. Era absolutamente claro que o Estado burguês, inteiro, dos tribunais às cadeias, dos parlamentos à polícia, dos exércitos aos fiscais de alfândega e aos cobradores de impostos, era uma máquina infernal de legitimação e auxílio da exploração do proletariado pela burguesia. Não que rejeitasse intervir dentro desse aparelho de Estado, bem entendido: Lenine nunca rejeitaria nenhum instrumento que interessasse ao proletariado utilizar para avançar, fosse um quilómetro, fosse um milímetro, na luta pela liquidação do capitalismo. Fosse um assento parlamentar, um comité de soldados, um jornal, ou uma cátedra. A diferença, contudo, entre a utilização do aparelho de Estado e a confiança nele, era-lhe muitíssimo clara. E a ideia de se poder usar o aparelho de Estado burguês, após vitória eleitoral, a favor do proletariado, ter-lhe-ia soado ridícula, se não lhe valesse as invectivas desapiedadas que reservou para o renegado Kautsky. O Estado burguês podia ser, conjuntural, táctica, e até cinicamente, utilizado pelo partido do proletariado. Mas a função central deste, a sua razão de ser, o motivo da sua existência, era a organização do proletariado por forma que este pudesse dispor do seu aparelho de Estado proletário, incumbido de fazer a revolução e liquidar, nela, o aparelho de Estado burguês.

As tentações são, todavia, coisas muito fortes. E tornaram-se tanto mais fortes quanto foram criadas condições, no pós-guerra, que encaminhavam os partidos comunistas de determinados países para um beco sem saída onde só lhe sobrava disputar o Estado burguês, arrancar-lhe concessões, e tornar a luta do proletariado contra ele cada vez mais difícil. Progressivamente, as vitórias eleitorais tornaram-se o seu objectivo central, alimentadas pela crença em que, se tinham sido arrancadas tantas concessões até ali, a vitória eleitoral significaria o desmoronar do capitalismo. Esta regressão ideológica foi sobremaneira acentuada com a ascensão de Kruschev à liderança soviética e a aplicação da tese da coexistência pacífica entre países de sistema social diferente, devendo o socialismo conquistar "todo o mundo, pela via eleitoral, até ao ano 2000", nas palavras deste dirigente. Os líderes comunistas assim enredados na luta legalista e parlamentarista descreveram, em direcção ao eurocomunismo, o trajecto que, 50 anos antes, Lenine verificara ser o dos social-democratas às vésperas da I Guerra Mundial : "[o] carácter relativamente "pacífico" do período de 1871 a 1914 alimentou o oportunismo primeiro como estado de espírito, depois como tendência e finalmente como grupo ou camada da burocracia operária e dos companheiros de jornada pequeno- burgueses" (…) [u]m pequeno círculo da burocracia operária, da aristocracia operária e de companheiros de jornada pequeno – burgueses podem receber algumas migalhas dos grandes lucros da burguesia (…) [o] conteúdo político do oportunismo e do social-chauvinismo é o mesmo: a colaboração das classes, a renúncia à ditadura do proletariado, a renúncia às acções revolucionárias, o reconhecimento sem reservas da legalidade burguesa, a falta de confiança no proletariado, a confiança na burguesia". O grau de acerto das palavras utilizadas no início do séc. XX na caracterização do ocorrido 50 anos depois tem, com efeito, algo de assombroso.

O reposicionamento relativamente ao Estado, a recuperação da concepção do Estado como instrumento da classe dominante para legitimar e agilizar a exploração e opressão dos trabalhadores, adquirido fundamental do pensamento marxista e do pensamento leninista é, quanto a mim, o ponto essencial em torno do qual se deve organizar a luta contra o oportunismo e contra o revisionismo. Sobretudo quando esta confiança oportunista no Estado burguês assume dimensão nova e tamanho inesperado, por via de projectos "humanizadores" da União Europeia, de refundação do projecto europeu, de recondução da UE ao seu projecto inicial de solidariedade entre os povos (esta última uma mistificação histórica sem nome), que têm no Partido da Esquerda Europeia o seu principal promotor, se dissemina a cada dia que passa. Sem a cabal recuperação deste traço fundamental do pensamento marxista, a luta do proletariado fica indefinidamente entravada, é conduzida por vias erróneas, e tem uma derrota inevitável. A recuperação é, claro está, o estabelecimento de uma estratégia e de uma táctica para combater o Estado burguês. Porque de nada servem as armas da crítica sem a crítica das armas.

13/Setembro/2014
[*] 
João Vilela - Licenciado em História e mestre em História e Educação. O original encontra-se emconscienciavisceral.wordpress.com/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

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